MADRIGAL
LÚGUBRE
Em vossa casa
feita de cadáveres,
ó princesa! ó
donzela!
em vossa
casa, de onde o sangue escorre,
quisera eu
morar.
Cá fora é o
vento e são as ruas varridas de pânico,
é o jornal
sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.
Dentro,
vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.
O mundo, sob
a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso
que o vosso
sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
Princesa:
acordada sois mais bela, princesa.
E já não
tendes o ar contrariado dos mortos à traição.
Arrastar-me-ei
pelo morro e chegarei até vós.
Tão completo
desprezo se transmudará em tanto amor...
Daí-me vossa
cama, princesa,
vosso calor,
vosso corpo e suas repartições,
oh daí-me! que
é tempo de guerra,
tempo de
extrema precisão.
Não vos direi
dos meninos mortos
(nem todos
mortos, é verdade,
alguns,
apenas mutilados).
Tampouco vos
contarei a história
algo monótona
talvez
dos mil e
oitocentos atropelados
no casamento
do rei da Ásia.
Algo
monótono... Ásia monótona...
Se bocejardes,
minha cabeça
cairá por
terra, sem remissão.
Sutil flui o
sangue nas escadarias.
Ah, esses
cadáveres não deixam
conciliar o
sono, princesa?
Mas o corpo
dorme; dorme assim mesmo.
Imensa berceuse sobe dos mares,
desce dos
astros lento acalanto,
leves narcóticos
brotam da sombra,
doces unguentos,
calmos incensos.
Princesa, os
mortos! Gritam os mortos!
querem sair! querem
romper!
Tocai
tambores, tocai trombetas,
imponde silêncio,
enquanto fugimos!
... Enquanto
fugimos para outros mundos,
que esse está
velho, velha princesa,
palácio em
ruínas, ervas crescendo,
lagarta mole
que escreves a história,
escreve sem
pressa mais esta história:
o chão está
verde de lagartas mortas...
Adeus,
princesa, até outra vida.
(Carlos
Drummond de Andrade)
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